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A Negra e a Cobra! Eds Olimpio. Crônicas & Agudas. Setembro 2020.
28 set 2020 Deixe um comentário
A Negra e a Cobra!
O caso relatado a seguir pode ser considerado mais uma dessas histórias fantásticas que preenchem os vazios das conversas entre avós e netos. Ou que faz as horas dolentes de noites quentes terem muito mais conteúdo. E que o suor não seja apenas do calor, seja aquele suor frio que fazem, ou já fizeram, as pessoas espiarem os cantos do quarto e, com o coração aos sobressaltos, horrorizar-se com qualquer sombra sob a cama ou a mover-se sorrateiramente.
A vida era muito dura, para todos naquela fazenda. E seus trabalhadores e proprietários traziam no corpo e na alma as suas cicatrizes. Tanto da labuta sem férias ou qualquer descanso, quanto das feridas que teimavam em não cicatrizar pela Revolução de ‘23. Ali trabalhava e vivia, desde seu nascimento, uma negra de nome Domiciana.
Domiciana!
Ao balanço de seus 20 anos, tornara-se uma mulher de poucas e necessárias palavras. Isso desde o trágico acidente que matara seu marido. Contam que durante uma doma, o bagual xucro como o vento pampiano, empinara e caíra de lombo, prensando o cavaleiro debaixo de si. Com a bacia quebrada e hemorragia interna, morrera lentamente com a cabeça no colo daquela mulher. Nunca a viram derramar uma lágrima. Diziam que as lágrimas tinham sido enterradas junto com o finado marido. Mas ele havia depositado em seu jovem ventre a semente daquele amor aquecido nos pelegos, nas noites em que o vento minuano era o milongueiro mais escutado nas revessas daquele pampa hostil e o amor bailava num sapateado naqueles corações apaixonados.
Ninguém engomava uma camisa como ela e os beijus que fazia na velha tafona eram inigualáveis. Também era de suas mãos que saía um churrasco de charque com aipim assado nas brasas do fogo de chão, o prato predileta da Vó Quita, a matriarca da estância.
O Parto!
Ganhara o filho:
– Solita, mas com Deus! – completava fazendo o sinal da cruz com os dedos da mão unidos num toque final nos lábios e os olhos virados para algum ponto do céu distante.
Partejara no casebre de madeira no meio do laranjal e na revessa das taquareiras. Com o sal da gamela e a água do poço, abençoou e banhou o filho. Assim como sempre escutara da falecida mãe que havia feito consigo. Da mesma forma a sua avó… Uma tradição familiar dessas mulheres acostumadas a lidar com a dor e a solidão. A solidão essa companheira inseparável de corpos e corações.
Sebastião!
O negrinho, forte e vivo, chamou-se Sebastião, em homenagem ao seu pai. Mas logo ganhou o carinhoso apelido de Gorgulho pela esposa e as filhas do estancieiro, onde disputava o colo e a atenção, mais que potrilho de campeão.
Domiciana, sempre após o café dos patrões, tomava o seu canecão de café com leite e canela, onde mergulhava sete pregos enferrujados – uma simpatia da Vó Quita – para o leite ficar mais forte. E o Gorgulho estalava os “beicinhos” ao mamar e espremer aqueles formidáveis e túrgidos seios.
Por volta do 6º mês de idade, o negrinho parou de ganhar peso e ficou meio “murcho”. Domiciana amanhecia com os peitos quase vazios. De início achavam que estava “secando o leite”. Ela não sabia o porquê, pois ele até:
– Mamava de madrugada! – sustentava com olhar espantado.
Realmente, escutavam o negrinho chorar e após acalmar-se em certo período da noite.
A família estava preocupada. Tentaram benzeduras, chás, simpatias e… Nada uncionava. Só faltava chamar o “doutor do povo”. Certa noite, Domiciana recolheu-se ao seu rancho meio febril. O patrão ordenou ao peão Crescêncio que a cuidasse, se ouvisse algo que fosse acudi-la.
Na madrugada, Gorgulho chorava sem parar. Crescêncio, que já havia dormido com o pala por cobertura, saiu à rua e espiando por uma fresta da janela de correr do casebre, sentiu o seu tarimbado coração quase explodir de pânico. – “Acordem todo mundo”! Acordou o patrão e foram todos, sob sua orientação, pé ante pé, espiar o que se sucedia.
A cobra!
Uma cena capaz de arrepiar ao mais valente e destemido. A luz bruxuleante e fugidia do candeeiro de querosene fazia o réptil visível agigantar-se nas sombras. Uma cobra. Uma cobra preta. Enorme. Enrolada num canto do travesseiro de palha. A mãe em sono febril. Delirante. O animal mamando na teta da negra agitada. Ao choro do negrinho, a cobra colocava o rabo em sua boca. Ele chupava a cauda parando de chorar. Depois de certo tempo, ao não sair leite, voltava a chorar.
Nas sombras malignas, o horror aumentava.
– Arrombem a porta! – berrou o patrão a plenos pulmões.
Invadiram o rancho, matando a cobra. Após, em alarido, a peonada se reuniu na mangueira vendo aquele enorme réptil pendurado nos varais do alambrado. Escorria sangue, pouco e leite, muito, de sua cabeça parcialmente esmagada.
Daí, em diante, a saúde voltou para Domiciana e Gorgulho.
A lenda. O causo. E o acontecido mais uma estória se tornou. Para muitos, somente uma lenda. Para quem viveu aqueles momentos, uma marca eterna, como a vida e os mistérios da natureza. Ainda hoje está enterrado na figueira secular daquela estância um facão com Gorgulho gravado no chifre da sua empunhadura. A árvore cresceu e abocanhou a lâmina profundamente. Ali está proteger as crianças e suas mães das serpentes.
A negra e a cobra!
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A Negra e a Cobra!
** Uma lenda universal que verti para nossa região.
** Na minha família é uma tradição contar estórias e histórias paras as crianças.
** Conta-se a estória original e após faz-se modificações teatralizando, incluindo outros personagens infantis junto com meus netos, por exemplo. Desenvolvendo virtudes em cada um dos atores e no grupo. Sempre com final feliz.
** Temos três netos e cada um contava a sua versão da estória com liberdade e incentivo para criar.
** Crianças adoram temas assustadores, principalmente sendo vencedores e heróis.
** Experimente assim com suas crianças (filhos, netos, sobrinhos, etc).
A Negra e a Cobra! Eds Olimpio. Crônicas & Agudas. Setembro 2020. Reedição.
27 set 2020 1 comentário
em Crônicas & Agudas - O Livro!
A Negra e a Cobra!
O caso relatado a seguir pode ser considerado mais uma dessas histórias fantásticas que preenchem os vazios das conversas entre avós e netos. Ou que faz as horas dolentes de noites quentes terem muito mais conteúdo. E que o suor não seja apenas do calor, seja aquele suor frio que fazem, ou já fizeram, as pessoas espiarem os cantos do quarto e, com o coração aos sobressaltos, horrorizar-se com qualquer sombra sob a cama ou a mover-se sorrateiramente.
A vida era muito dura, para todos naquela fazenda. E seus trabalhadores e proprietários traziam no corpo e na alma as suas cicatrizes. Tanto da labuta sem férias ou qualquer descanso, quanto das feridas que teimavam em não cicatrizar pela Revolução de ‘23. Ali trabalhava e vivia, desde seu nascimento, uma negra de nome Domiciana.
Domiciana!
Ao balanço de seus 20 anos, tornara-se uma mulher de poucas e necessárias palavras. Isso desde o trágico acidente que matara seu marido. Contam que durante uma doma, o bagual xucro como o vento pampiano, empinara e caíra de lombo, prensando o cavaleiro debaixo de si. Com a bacia quebrada e hemorragia interna, morrera lentamente com a cabeça no colo daquela mulher. Nunca a viram derramar uma lágrima. Diziam que as lágrimas tinham sido enterradas junto com o finado marido. Mas ele havia depositado em seu jovem ventre a semente daquele amor aquecido nos pelegos, nas noites em que o vento minuano era o milongueiro mais escutado nas revessas daquele pampa hostil e o amor bailava num sapateado naqueles corações apaixonados.
Ninguém engomava uma camisa como ela e os beijus que fazia na velha tafona eram inigualáveis. Também era de suas mãos que saía um churrasco de charque com aipim assado nas brasas do fogo de chão, o prato predileta da Vó Quita, a matriarca da estância.
Ganhara o filho:
– Solita, mas com Deus! – completava fazendo o sinal da cruz com os dedos da mão unidos num toque final nos lábios e os olhos virados para algum ponto do céu distante.
Partejara no casebre de madeira no meio do laranjal e na revessa das taquareiras. Com o sal da gamela e a água do poço, abençoou e banhou o filho. Assim como sempre escutara da falecida mãe que havia feito consigo. Da mesma forma a sua avó… Uma tradição familiar dessas mulheres acostumadas a lidar com a dor e a solidão. A solidão essa companheira inseparável de corpos e corações.
O negrinho, forte e vivo, chamou-se Sebastião, em homenagem ao seu pai. Mas logo ganhou o carinhoso apelido de Gorgulho pela esposa e as filhas do estancieiro, onde disputava o colo e a atenção, mais que potrilho de campeão.
Domiciana, sempre após o café dos patrões, tomava o seu canecão de café com leite e canela, onde mergulhava sete pregos enferrujados – uma simpatia da Vó Quita – para o leite ficar mais forte. E o Gorgulho estalava os “beicinhos” ao mamar e espremer aqueles formidáveis e túrgidos seios.
Por volta do 6º mês de idade, o negrinho parou de ganhar peso e ficou meio “murcho”. Domiciana amanhecia com os peitos quase vazios. De início achavam que estava “secando o leite”. Ela não sabia o porquê, pois ele até:
– Mamava de madrugada! – sustentava com olhar espantado.
Realmente, escutavam o negrinho chorar e após acalmar-se em certo período da noite.
A família estava preocupada. Tentaram benzeduras, chás, simpatias e… Nada uncionava. Só faltava chamar o “doutor do povo”. Certa noite, Domiciana recolheu-se ao seu rancho meio febril. O patrão ordenou ao peão Crescêncio que a cuidasse, se ouvisse algo que fosse acudi-la.
Na madrugada, Gorgulho chorava sem parar. Crescêncio, que já havia dormido com o pala por cobertura, saiu à rua e espiando por uma fresta da janela de correr do casebre, sentiu o seu tarimbado coração quase explodir de pânico. – “Acordem todo mundo”! Acordou o patrão e foram todos, sob sua orientação, pé ante pé, espiar o que se sucedia.
A cobra!
Uma cena capaz de arrepiar ao mais valente e destemido. A luz bruxuleante e fugidia do candeeiro de querosene fazia o réptil visível agigantar-se nas sombras. Uma cobra. Uma cobra preta. Enorme. Enrolada num canto do travesseiro de palha. A mãe em sono febril. Delirante. O animal mamando na teta da negra agitada. Ao choro do negrinho, a cobra colocava o rabo em sua boca. Ele chupava a cauda parando de chorar. Depois de certo tempo, ao não sair leite, voltava a chorar.
Nas sombras malignas, o horror aumentava.
– Arrombem a porta! – berrou o patrão a plenos pulmões.
Invadiram o rancho, matando a cobra. Após, em alarido, a peonada se reuniu na mangueira vendo aquele enorme réptil pendurado nos varais do alambrado. Escorria sangue, pouco e leite, muito, de sua cabeça parcialmente esmagada.
Daí, em diante, a saúde voltou para Domiciana e Gorgulho.
A lenda. O causo. E o acontecido mais uma estória se tornou. Para muitos, somente uma lenda. Para quem viveu aqueles momentos, uma marca eterna, como a vida e os mistérios da natureza. Ainda hoje está enterrado na figueira secular daquela estância um facão com Gorgulho gravado no chifre da sua empunhadura. A árvore cresceu e abocanhou a lâmina profundamente. Ali está proteger as crianças e suas mães das serpentes.
A negra e a cobra!
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