2014 – 12 – “Tota Pulcra es, Maria, et macula originalis non est in Te!” – Edson Olimpio Oliveira – Crônicas & Agudas – Jornal Opinião – http://www.edsonolimpio.com.br
Evadidos, fugidos ou literalmente corridos pelas forças militares castelhanas comandadas pelo General Pedro Ceballos, governador de Buenos Aires, que miravam a Vila e as fortificações de Jesus, Maria e José da antiga cidade de Rio Grande refugiaram-se nos Campos do Viamão buscando acolhida, refúgio e apoio para o enfrentamento dos invasores. O representante do império buscava cativar e apoiar-se nos estancieiros e boiadeiros dispersos numa terra fustigada pelo clima inclemente e disputada por dois impérios. Assim a Viamão que hoje conhecemos e amamos tornou-se a “primeira capital real de todos os rio-grandenses (gaúchos)”. Ali viviam guerreiros acostumados a defender a vida e a respeitar a morte no dia a dia. Muitos deserdados do império, outros buscando a fortuna, todos a viver até o dia seguinte. Em cada cobertura de couro cru, em cada casebre, um homem e uma mulher, alguém disposto a lutar. Morrer ou matar são as consequências naturais do combate. E a guerrilha organizou-se e criou o embrião de uma nova estirpe que seriam os brasileiros por opção.
O sangue dos combatentes e de suas montarias fervia no solo disputado. As crianças logo homens precoces se tornavam e na dor da ausência de seus pais ou familiares engrossavam outra espécie de lutadores buscando reconstruir um lar e acalmar um coração no calor do afeto de outro ser. O catolicismo era o bálsamo espiritual e a tentativa de resposta ao clamor da alma sofrida e quantas vezes dilacerada. Alguns oravam antes das contendas pela sua alma e de seus amigos e companheiros. Outros oravam pelas almas dos inimigos. Muitos para que os portões do Inferno estivessem escancarados para recebê-los. Nas guerras não há bons ou maus, há perdedores e vitoriosos.
O negro do violino
Um negrinho manco aproximou-se do velho estancieiro que ao tocar seu violino fazia a natureza abrir-se no sorriso de suas flores e o gado arredio encostar-se docemente no alambrado das taipas de pedras. O menino era mais um dos desgarrados que acompanhavam os tropeiros que subiam a serra para Lages com Sorocaba na alça de mira. Talvez o defeito físico de nascença tenha o tornado um órfão de pais vivos. E o velho gostou do negrinho. Os dias engatinhavam em anos que se arrastavam e o negrinho aprendeu a tocar violino com o velho que se tornou seu protetor. Seus dois netos desenvolveram-se junto com aquele negrinho, que protegido por um amor nascido em alguma vida esquecida, fez-se parte da família. Logo o violino era escutado e sentido nas alegrias e nas tristezas, como quando do velório e do sepultamento do seu benfeitor. Já homem, um negro atarracado, de constituição sólida, de invulgar destreza e agilidade tanto no trato do gado, das montarias quanto nas peleias necessárias. Assemelhava-se a habilidade com o arco do instrumento em divinas notas musicais quanto com o punhal mouro presenteado pelo seu benfeitor. Pendia em seu pescoço uma medalha de Nossa Senhora da Conceição de origem desconhecida para todos, inclusive para ele. Teria sua mãe natural a colocado ali para que a Santa fizesse o que ela não seria capaz de fazer criando-o e protegendo-o?
A guerra
A falta de exércitos regulares faz com que a Junta Governativa do Rio de Janeiro determine: – “A guerra contra os invasores será feita com pequenas patrulhas atuando dispersas, localizadas em matos e nos passos dos rios e arroios. Destes locais sairão ao encontro dos invasores para surpreendê-los, arruinar-lhes cavalhadas, gados, suprimentos e mantê-los ainda em contínua e persistente inquietação.” (Arquivos Históricos do Exército Brasileiro)
Rafael, filho do feroz Francisco Pinto Bandeira, buscava os melhores cavalos nas estâncias do Viamão para sua Cavalaria Ligeira. Rafael Pinto Bandeira já era um símbolo vivo e temido pelos castelhanos. Muitos enchiam as botas de urina ao som de seu nome. Os dois irmãos, a contragosto de sua mãe e num misto de orgulho e dor do pai que acedeu ao desejo dos filhos de combater aos castelhanos. Não iriam sós. Estariam sempre acompanhados do irmão de amor que como anjo protetor sempre esteve ao lado deles protegendo-os e amparando-os como o avô teria feito e desejado. Os três despediram-se da família e dos amigos no altar da igreja encastoada no topete da coxilha do Viamão. Depois da bênção dos pais, agora a benção da Santa protetora.
Dias de dor e de angústia. Notícias boas eram escassas. Sabia-se que continuavam lutando inclusive com os Dragões do Império na Tranqueira Invencível, hoje cidade de Rio Pardo que pela posição estratégica dominava os acessos por água da região. Falavam de um negro manco que tocava um violino nas noites mal dormidas e após os sangrentos combates e que conquistara o respeito de seu comandante e dos companheiros. E de dois irmãos de voraz destreza nas armas brancas e pontaria mortal que estavam sempre juntos.
Outro intrépido combatente fazia sua fama, um paulista de nome Cypriano Cardoso de Barros Lemes que entre seus guerrilheiros tinha uma negra dotada de estranho poder com aranhas (1). Suas tropas cruzaram-se num acampamento nas barrancas do Camaquã. Contam que os dois negros se olharam por quase um quarto de hora, o mundo parou ali naquele momento, como se nenhum guerrilheiro ousasse balbuciar, tossir o mover-se com ruído. Nem os animais pareciam respirar. O negro com a mão direita na medalha em seu peito arfava movimentando as narinas e a negra com os olhos faiscantes vibrava com as longas unhas enterradas nas palmas das mãos já sangradas. Olhos esbugalhados acompanhavam o desenlace. Algum combate além do entendimento da plateia aconteceu e terminou quando a negra desapareceu nos matos. Naquela noite o violino era ouvido a léguas de distância num lamento mortal como numa época em que deuses andavam sobre essa terra.
O derradeiro combate
Tropas castelhanas aglomeravam-se na região de Encruzilhada do Sul. A guerrilha fustigava seus flancos e espreitava emboscando patrulhas no terreno rochoso. Comandantes rio-grandenses trocavam mensagens e aguardavam reforços para frear a investida. Planos feitos e estratégia concluída. O sol da tarde cedia seu trono para nuvens de tempestade. Logo com coriscos rasgando o manto celeste. Trovoadas ao longe avisam que nas coxilhas distantes alguma batalha já começara. E a peleia iniciou. Os guerreiros de Rafael Pinto Bandeira romperam a parede castelhana e o aço cintilava no céu cinzento espalhando aquilo que um dia fora a vida escarlate e agora era a morte rubra e borbulhante nos esguichos fatais e logo em coágulos negros. Eis que os flancos castelhanos não receberam a mesma carga de combate que fora combinada e logo a desproporção numérica tornou-se avassaladora contra Rafael e seus combatentes. E viram-se cercados num garrote esgorjado. Mas a noite e a tempestade tornaram-se aliados e os sobreviventes abriram seus caminhos sobre corpos de amigos tombados e de inimigos.
Dia seguinte, reagrupados na encosta de um cerro, cauterizaram as feridas com ferro em brasa e abandonaram frangalhos de carne dilacerada na lama ensanguentada. A chuva fina e o vento sul gelavam as feridas. Um dos irmãos estava com o olhar perdido, embaçado como de peixe morto após acordar com ferimento de projétil em sua cabeça rasgando o couro cabeludo e deslizando nos ossos. Dado como morto foi resgatado nas costas do amigo negro, que com o braço direito dilacerado por um golpe de espada que evitara a decapitação de seu outro irmão. O branco do osso descarnado ria como bocarra aberta das dores dos homens num contraste com sua pele negra e seu sangue coagulado pelo fogo. Queriam amputar-lhe o braço. Não permitiu. Ancoraram as bordas da ferida com grampos de metal. Logo marchavam para algum refúgio seguro para escapar das patrulhas castelhanas. Mal sabiam eles que as baixas do inimigo tinham sido colossais e não teriam recursos nem homens para novos combates tão cedo.
O retorno
Uma energia poderosa persistia em brotar do coração do negro através da envelhecida medalha da Imaculada Conceição. Sua mãe celestial que nunca o abandonara estava ali amparando-o e aos seus companheiros. Uma prece silenciosa com a medalha mergulhada na água que todos bebiam e lavavam os ferimentos dividia a luz de seu coração. Após desembarcarem da barcaça no pontal de Itapoã, a terra natal estaria logo ali a poucas léguas de distância. Somente os três retornaram para Viamão. Seu pai e conterrâneos encontraram-nos a meio caminho. A primeira casa a entrarem foi a última que pisaram, a velha igreja. A ancestral igreja onde pediram bênçãos de batalha para a vida e descanso para a morte. Um irmão com a mente perdida, outro lutando contra a febre das infecções e o terceiro com um membro mutilado.
Aquele negro manco trazia essa luminosidade dentro de si que o levava ao altar da Virgem todos os dias e ali reaprendeu a tocar o violino empunhando o arco com a mão esquerda e acomodando-o no ombro direito num divino quanto incrível malabarismo. A cidade escutava aquele som que a muitos fazia rolar lágrimas e que a todos trazia um enorme respeito e admiração. Voltava com uma jarra de água abençoada para seus irmãos. Alguns começaram a sentir um formidável perfume de rosas no templo nos momentos de preces. Os singelos vasos, no entanto, mal mostravam algumas flores do campo e de doloridos jardins. – O perfume aumentava principalmente quando o negro solava o violino. – dizia-se. E a saúde retornou aos corpos enfermos. A febre dissipara-se e a mente resplandecia. Ficaram as cicatrizes de batalha e… a fé renovada.
Como a água dos rios e riachos, a vida tende a voltar ao seu leito natural e escorrer no seu tempo.
Nosso tempo!
Nosso formidável templo denota um doloroso abandono e uma deprimente e mal feita restauração, principalmente para quem nasceu e mora nessa cidade há mais de meio século. Suas imponentes paredes de dois metros de largura, solidificadas com argamassa de conchas trazidas do oceano a 100 km. Altares barrocos de madeira habilmente entalhada. E um arco gigantesco que serve de portal ao altar mor trazia a frase em latim “Tota Pulcra es, Maria, et macula originalis non est in Te” que seria “Toda pura sois Maria! A mancha do pecado original não há em Ti!”. No altar mor está a bela imagem da Mãe de Cristo sobre um globo terrestre com anjos aos seus pés e o manto celestial bordado de estrelas, chamada de Nossa Senhora da Conceição emprestou parte de seu nome para nomear as crianças de pais devotos e Edsondar-lhes a proteção e o amparo necessário. O belo forro azul celeste com tão bela quanto imensa pintura espelhando amor e fé deu lugar às tábuas nuas e simplórias.
Católicos e outros cristãos, assim como extraviados da fé e desencontrados de qualquer religião vem buscar consolo à luz da Virgem milagrosa. Conta-se que pessoas ao entregarem-se a Deus pelas mãos de Nossa Senhora sentiram as suaves fragrâncias de rosas na solidão física do enorme templo. Alguns já ouviram sons de violino sem saberem ou desconfiarem que algum negro manco em dias perdidos na imensidão dos tempos fizesse ali a sua melodia. Esses certamente serão merecedores das dádivas luminosas da Mãe magnífica. Céticos sempre existirão vagueando nas sombras do amor e da fé. Negam-se a acreditar na Luz, mas a Luz persiste em acreditar neles e em algum tempo, em algum momento eles serão tocados e talvez escutem um violino empunhado por um negro mutilado nas batalhas do pampa, com uma medalha pendente no peito largo e olhos que trazem a luz do amor e do respeito.
Nota do autor.
Imagem gentilmente cedida por
Glauce Petry Dutra
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Viamão – hoje a primeira capital de todos os gaúchos que se uniram contra um adversário poderoso e tornaram-se brasileiros por sua vontade. Algo que se repetiu na opção na legendária Guerra dos Farrapos. Viamão tem a segunda igreja desse Estado. Viamão tem seu nome envolto numa bruma de mistério ainda insolúvel na certeza pretendida, traz suas histórias, estórias e lendas. Já dizia o filósofo – Lenda é aquilo que os outros contaram, história é aquilo que os nossos contaram e nós aceitamos confiar. Assim heróis e figuras legendárias da nossa tradição trazem mitos ou verdades nas suas malas de garupa. (1 – Leia A Negra das Aranhas – uma saga magnífica de amor e de maldição). Uma homenagem para minha irmã Shirley Celina, católica fervorosa, minha mãe Dora, costureira e hábil no crochê que fazia as toalhas dos altares e outras obras magníficas e ao querido amigo Padre Ignácio Rafael Valle, jesuíta que criou a Romaria da Medianeira tornando-a nossa Padroeira no Estado.
Um Feliz Natal e maravilhoso Ano Novo!