“Ningum vai enquanto no chega a sua hora!” Edson Olimpio Oliveira. Crnicas & Agudas. Jornal Opinio de Vi amo. 2024.04.23

“Ninguém vai enquanto não chega a sua hora!”

Esse caso parece fantasioso, mas é verídico dentro da dramatização necessária para deglutir e digerir em curiosidades pelo arguto leitor de Crônicas & Agudas!

Um veterano de muitas batalhas da vida campeira e sovado pelo cabo da enxada nas capinas das roças de aipim, batata-doce e tudo o mais para os animais e o homem se nutrirem. As rugas da idade tornaram-se ravinas, quase crateras. Estropiado pelo tempo, amargava várias enfermidades, algumas colhidas ao acaso e outras cultivadas pelo fumo, principalmente. Tropeava e tropeçava em anos rumo a um século de vida e de sobrevivência. Tanto passava pelas mãos de médicos de Viamão como de Porto Alegre e também pelos práticos (curandeiros) e benzedores da região.

Escaldado de hospital – “Quero morrer em casa e na minha cama!” Assim alertava aos vários filhos, a esposa, o padre e ao seu principal médico. Dona Ermengarda, sua esposa, tratava-o como uma criança pequena, cuidando de cada detalhe do banho, da comida e dos “ventos encanados que dão pneumonia”. Nada fácil, quando um homem é velho – pior ainda, é rebelde uma barbaridade. Proprietário de uma boa extensão de terra e gado, ali, em suas casas, moravam a maior parcela dos filhos. Por algumas vezes, “com um pé na cova” recebeu extrema unção do padre Antônio, gringo com forte sotaque italiano. Até que certa feita, o padre cansado dos chamados no verão escaldante ao inverno chuvoso e “guasquiado pelo vento Minuano” deu a “última extrema unção, pois agora já está mais que benzido e encaminhado ao Criador”.

Batendo à porta do século, o velho Filirmino estava muito mal – “tô piorando tanto que estou com a bossoroca”, gemeu. “Tá na minha hora. Até tô vendo meus parentes e minha finada mãezinha” – balbuciou no leito. Inverno da geada pintando os campos de branco. Frio! Da urina empedrar antes de cair na grama. Vários dias sem sol, além de nuvens pretas e chuvisqueiro intermitente. As estradas atolando até carreta de bois. E foi aquela correria. Uns a pezito e outros a cavalo chamando a família e avisando aos amigos, já que o quase finado abotoara o penúltimo botão. Pessoa muito bem quista e apreciada.

A casa e os galpões foram se enchendo de povo. Gente de toda banda aportava no velho casarão. Um dos filhos, dotado como carpinteiro, desceu as tábuas novas guardadas nos caibros do galpão e começou a fazer o caixão, o ataúde do pai. Entre muito choro e ronco de serrote, pancada de martelo e gemido de plaina e enxó, o caixão ganhou forma e beleza com uns pegadores e fechos de prata. A lamúria, vertida em muito choro de longe, se ouvia mesclada com o assovio do vento. O dia passou e a noite se achegou sem muita diferença. O enfermo nas “finaleiras” persistia gemendo e puxando ar, arreganhando as ventas cabeludas. Trocavam as velas que ele segurava. Espalharam-se mais velas e candeeiros. Matou-se mais de meia dúzia de galinhas gordas e com uma manta de charque fizeram comida para aquele povo todo, já faminto e cansado.

A maioria já tinha esgotado o estoque de lágrimas e as orações misturavam um pai-nosso com ave-maria, trocando as frases. A Menininha, filha derradeira, muito “agarrada ao paizinho” não largava sua mão e não arredou da prontidão. O cansaço, agora com a fome serenada, bateu em sono. E uns se jogaram nos cantos, outros nos pelegos, nas carretas e nos montes de palha.

E o galo cantou saudando uma nesga de sol que veio lutar com o inverno cruel. Uma forte luz amarela varou a janela e bateu nos olhos do velho Filirmino. Acordou-se. Deu uma baita suspirada, tossiu limpando a picumã do pulmão e meio brabo falou para a Meninha: “Minha filha, já que não morri mesmo, me faz um café preto bem forte, quero um arroz de leite com canela e frita uma meia dúzia de ovos com um pedaço de carne, que estou louco de fome e muito fraco”.

Pois é, o velho Filinho não foi dessa vez. Nem de outras. Varou os 100 anos e morreu um dia qualquer sem nenhum aviso prévio, como se diz, “caiu o disjuntor”.

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2024.04.23 – Ninguém vai enquanto não chega a sua hora! Edson Olimpio Oliveira

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